Este nome ganhava outro sentido quando era acompanhado do título académico obtido ao longo de seis longos anos.
Na verdade, quem existia era o Dr. Lourenço Silva, porque o Lourenço desvanecia-se quando ultrapassava a porta da sala de espera do consultório médico.
Embora fosse uma grande figura do panorama clínico lisboeta, equiparava-se ao mendigo a quem dava esmola diariamente. Esta transformação sucedia por magia, logo que retirava o pedaço de tecido branco, colorido apenas pelas 5 canetas penduradas no bolso junto ao coração.
Coração, esse era o seu grande problema! Com a sua especialidade tratava do coração dos seus pacientes, sempre com grande mestria. Só não arranjava tratamento para o seu!
As únicas amizades, ligeiras, que conquistara eram a da sua assistente de 62 anos e de dois delegados de propaganda médica que o visitavam oferecendo congressos em troca de caixas de medicamentos de marca. Mesmo assim não eram daqueles amigos a quem ele tinha coragem de ligar para tomar um café.
Tinha estudado noites a fio e dedicado toda a sua vida a um sonho, no entanto após ter conquistado o patamar mais alto na sua profissão, olhava para todos os lados e via apenas o Dr. Lourenço Silva. O cardiologista bem sucedido, tinha como troféus um bom ordenado, um bom carro, uma mansão em Cascais e, mais nada...
Desperdiçara oportunidades atrás de oportunidades, amizades, sentimentos e convivências...
No meio de tudo o que toda a gente queria, não tinha a única coisa boa que consolava as pessoas razoavelmente felizes.
Normalmente chegava à conclusão dos erros que cometera, ao jantar, na grande mesa da sua sala de jantar com apenas uma cadeira ocupada.
Pensava nisso, após o jantar ao som de sua música clássica, acompanhado de um copo de whisky velho.
Esquecia todos esses pensamentos no momento em que encostava a sua cabeça na almofada.
E, voltava a ser feliz quando entrava no consultório no dia seguinte.
4 comentários:
É incrível!!! Para algumas pesoas é quase impossível ter tudo!!!! Quando uma estabilidade financeira é buscada e alcançada, é porque houveram abdicações, mas quando não se abre mão de certas oportunidades interpessoais, a estabilidade financeira poderá não ser alcançada.Em fim, ou nos tornamos um amável pai de familia amigavel e fracassado ou nos tornamos um DR. solitário sem uma construção natural da vida: Amigos e família!!!!
Gostei do que li. Não sei se é de autor consagrado ou se de autor a consagrar-se.
Quantos de nós, às vezes, nem por materialismo, mas por circunstâncias de sobrevivência olhamos o espelho e estamos sós. Apenas nos sentimos «vivos» quando vestimos os trajes de uma profissão bem sucedida que escondeu o indivíduo que habita em cada um de nós.
Isabel Montes
http://isabelmontes-poemas.blogspot.com/
Leitura interessante. Na verdade fiquei um pouco triste porque sinto que estou a seguir o mesmo caminho. Estou tão focada em querer tirar um curso de direito que até mudei de país deixando tudo para trás e estando em londres à quase dois anos ainda não arranjei uma vida social propriamente dita. Isto foi como que para me abrir os olhos e mostrar que ainda vou a tempo e posso começar agora, hoje, porque se deixar para amanhã, amanhã deixo para o dia seguinte. Não é tarde para si também, comece hoje também.
Muita injustiça nesse atual sistema mundial. Parece que para alcançar a dita "felicidade" a pessoa precisa "engolir" o mundo, e para tal é necessário que ela abra mão da família, dos amigos, das vontades juvenis e das emoções sadias para então abraçar valores do mercado de trabalho, que só levam à autodestruição.
Aqui no Brasil, muita gente está de saco cheio com esse mercado de trabalho exaustivo...
Ótima escrita.
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